RESUMO: O presente estudo visa analisar o abandono afetivo parental como ensejador da responsabilidade civil extrapatrimonial, razão pela qual serão pontuadas questões acerca da afetividade nas relações familiares à luz dos princípios constitucionais e dos deveres impostos pelo ordenamento jurídico.
Palavras-chave: Afeto. Família. Abandono. Responsabilidade civil.
ABSTRACT
The present study aims to analyze parental emotional abandonment as a source of extra-patrimonial civil liability, which is why questions about affection in family relationships will be addressed in light of constitutional principles and duties imposed by the legal system.
Keywords: Affection. Family. Abandoned. Civil responsability.
1 INTRODUÇÃO
O debate sobre o dever de afeto vem ganhando importante atenção nos debates doutrinários e jurisprudenciais sobre o direito de família. A conveniência da responsabilidade civil extrapatrimonial decorrente do abandono afetivo começa a ser levantada em virtude do amplo leque de proteção destinado aos indivíduos pela Constituição Federal de 1988, que é preceptora de inúmeros princípios aplicáveis na seara do direito de família.
Desde 1988, com a promulgação da atual Carta da República, que é resultante de um processo de redemocratização, o indivíduo ganhou um papel fundamental, passando a ser o centro de todas as atuações estatais, de forma que todos os Poderes devem agir de forma a garantir todos os direitos fundamentais que lhe são assegurados. Assim, a família, como núcleo de convivência coletiva e entidade de extrema importância na sociedade, não poderia ter sido excluída desse leque protecionista, motivo pelo qual passou a gozar da mesma proteção, onde vários princípios constitucionais devem ser-lhes aplicados de maneira semelhante.
2. DESENVOLVIMENTO
A sociedade, como organismo social que é, vem evoluindo e passando por constantes mutações que refletem de forma direta nas relações concernentes ao direito de família, já que é no seio familiar que acontecem as mudanças mais significativas.
Verifica-se que o conceito de família do início do século XX é totalmente diferente do atual, havendo que se falar ainda, que hoje não existe mais aquele dito modelo de família, mas sim um mosaico de entidades familiares, todas reconhecidas pelo direito.
Até o século passado, a família tinha como pilar dois aspectos: o matrimônio, estabelecido pelo casamento civil e o vínculo biológico, que eram imprescindíveis para sua formação. Já nos dias atuais, com a modificação do conceito de família, de acordo com o doutrinador Paulo Lobo, é necessário a presença de três elementos para sua caracterização, quais sejam, afetividade, estabilidade e ostentatibilidade.
Partindo para a análise do ordenamento jurídico, é possível constatar que a Constituição Federal de 1988, assim como nenhuma outra, reconhece a família como entidade preceptora de princípios e da personalidade do indivíduo, de modo que ela visa salvaguardar a relação familiar de convívio baseada no cuidado e afeto dos pais para com seus filhos.
A Magna Carta é clara ao preconizar em seu artigo 227 que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores”, consagrando assim, um direito constitucional que os filhos têm de serem cuidados e protegidos por seus pais em qualquer situação, sem que haja qualquer restrição advinda da formação familiar em que estejam incluídos.
No entanto, o que se ver no cotidiano, é este dever sendo descumprido, e consequentemente, o direito dos filhos sendo maculado por culpa exclusiva de um dos pais. A situação é mais comum, sendo vislumbrada constantemente naqueles casos em que os pais e filhos não habitam no mesmo lar.
As justificativas para o desafeto são diversas, mas geralmente o pai ou mãe que abandonam reputam que suas obrigações com o filho abarcam tão somente a prestação de alimentos, esquecendo-se do seu dever de educar e acompanhar a vida e o crescimento de seu filho, a fim de que lhe seja assegurado a mais ampla proteção de seus interesses.
Um importante princípio a ser mencionado neste momento, trata-se de um macroprincípio que reflete em várias normas constitucionais, além de incidir nas relações familiares, é o princípio da dignidade da pessoa humana, estampado no corpo constitucional em seu artigo 1º, inciso III.
Sabe-se que este princípio é pilar do ordenamento jurídico brasileiro, sendo um vetor paradigmático de interpretação e integração. Através dele podemos garantir que o Estado e sobretudo o Direito, devem promover a própria dignidade da pessoa humana, pautando suas ideias e atuações de acordo com aquilo que será mais benéfico ao indivíduo, respeitando não apenas a integridade física, mas também a moral e a psicológica, assim como implementem condições para que o ser humano alcance da tão sonhada felicidade.
No sentido de confirmar a ampla projeção conferida ao ora princípio, os doutrinadores Rolf Madaleno e Eduardo Barbosa, citam em sua obra, o seguinte entendimento de Rodrigo Pereira da Cunha, percursor da tese que defende a possibilidade da responsabilização:
“O Direito de Família somente estará em consonância com a dignidade da pessoa humana se determinadas relações familiares, como o vínculo entre pais e filhos, não forem permeados de cuidado e de responsabilidade, independentemente da relação entre os pais, se forem casados, se o filho nascer de uma relação extraconjugal, ou mesmo se não houver conjugalidade entre os pais, se ele foi planejado ou não. (...) Em outras palavras, afronta o princípio da dignidade humana o pai ou a mãe que abandona seu filho, isto é, deixa voluntariamente de conviver com ele” (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Responsabilidade Civil por abandono afetivo. In: Responsabilidade Civil no Direito de Família, ob. cit., p. 406)
Assim, mais que orientar a atuação estatal, podemos dizer que a referida norma-princípio é norma de eficácia horizontal, devendo se fazer presente e ser respeitada também nas relações entre particulares, sobretudo naquelas do âmbito familiar, entre pais e filhos, servindo como fundamento para a responsabilidade civil em razão do abandono afetivo.
Além da dignidade da pessoa humana, como já mencionado anteriormente, no corpo constitucional encontramos uma série de princípios aplicáveis à seara familiar, dentre eles podemos citar o princípio da solidariedade familiar, extraído por analogia do princípio da solidariedade social, previsto no art. 3º, inc. III, da CRFB/88, de onde infere-se que todos os membros da família devem atuar para a formação de um ambiente capaz de promover o bom desenvolvimento dos filhos, onde eles sintam-se acolhidos e protegidos.
Já a norma do art. 226, §7º, da CRFB/88, ao prescrever que o planejamento familiar deve ser pautado na paternidade responsável, permite a extração de um outro princípio, o da paternidade responsável. Outrossim, pode-se afirmar que não apenas a paternidade, mas toda e qualquer relação parental deverá ser exercida com responsabilidade.
Seguidamente, o texto do artigo 227, caput, da Constituição Federal, assevera ser “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Logo, através da leitura desta norma é possível a identificação de dois importantes de princípios que sempre são levantados pela doutrina na fundamentação da responsabilidade, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente.
À vista disso, é possível constatar já no corpo constitucional, lei suprema do ordenamento jurídico, normas que dispõem sobre o dever e a responsabilidade dos pais com seus filhos, as quais já servem oportunamente como justificativa legal para a reparação pecuniária ora tratada.
Diante desta conjuntura, abriu-se espaço para questionar se a ausência de afeto no âmbito familiar seria capaz de deixar sequelas na esfera psicológica do indivíduo, aptas a justificar uma eventual reparação civil a título de danos extrapatrimoniais.
As posições são diversas, e até o presente momento não há qualquer consenso na esfera doutrinária ou judicial.
Os defensores da possibilidade da indenização utilizam como fundamento legal o disposto no art. 227, da CRFB/88, já citado acima, além de outras disposições infraconstitucionais preceituadas no art. 1643 do Código Civil e no art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que atribuem o poder familiar e responsabilidade dos pais diante da educação e proteção.
Através destes, sustentam que o dano seria eminente diante da obrigação dos pais em prestar auxílio psicológico aos filhos. Contudo, também há o reconhecimento de que do ponto de vista jurídico, o amor é uma faculdade, porém o cuidar é uma obrigação legal.
Em decisão recente, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a ocorrência de danos morais decorrente do abandono afetivo.
De acordo com o Tribunal “Uma interpretação sistemática desse conjunto de regras, pois, permite concluir que o abandono afetivo de um pai ou mãe para com a sua filha pode, ainda que em caráter excepcional, ser objeto de condenação em reparação de danos morais, especialmente quando bem demonstrada a existência dos pressupostos da responsabilidade civil.”
Na ementa da referida decisão constou o seguinte:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. PEDIDO JURIDICAMENTE POSSÍVEL. APLICAÇÃO DAS REGRAS DE RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES FAMILIARES. OBRIGAÇÃO DE PRESTAR ALIMENTOS E PERDA DO PODER FAMILIAR. DEVER DE ASSISTÊNCIA MATERIAL E PROTEÇÃO À INTEGRIDADE DA CRIANÇA QUE NÃO EXCLUEM A POSSIBILIDADE DA REPARAÇÃO DE DANOS. RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DOS PAIS. PRESSUPOSTOS. AÇÃO OU OMISSÃO RELEVANTE QUE REPRESENTE VIOLAÇÃO AO DEVER DE CUIDADO. EXISTÊNCIA DO DANO MATERIAL OU MORAL. NEXO DE CAUSALIDADE. REQUISITOS PREENCHIDOS NA HIPÓTESE. CONDENAÇÃO A REPARAR DANOS MORAIS. CUSTEIO DE SESSÕES DE PSICOTERAPIA. DANO MATERIAL OBJETO DE TRANSAÇÃO NA AÇÃO DE ALIMENTOS. INVIABILIDADE DA DISCUSSÃO NESTA AÇÃO. 1- Ação proposta em 31/10/2013. Recurso especial interposto em 30/10/2018 e atribuído à Relatora em 27/05/2020. 2- O propósito recursal é definir se é admissível a condenação ao pagamento de indenização por abandono afetivo e se, na hipótese, estão presentes os pressupostos da responsabilidade civil. 3- É juridicamente possível a reparação de danos pleiteada pelo filho em face dos pais que tenha como fundamento o abandono afetivo, tendo em vista que não há restrição legal para que se apliquem as regras da responsabilidade civil no âmbito das relações familiares e que os arts. 186 e 927, ambos do CC/2002, tratam da matéria de forma ampla e irrestrita. Precedentes específicos da 3ª Turma. 4- A possibilidade de os pais serem condenados a reparar os danos morais causados pelo abandono afetivo do filho, ainda que em caráter excepcional, decorre do fato de essa espécie de condenação não ser afastada pela obrigação de prestar alimentos e nem tampouco pela perda do poder familiar, na medida em que essa reparação possui fundamento jurídico próprio, bem como causa específica e autônoma, que é o descumprimento, pelos pais, do dever jurídico de exercer a parentalidade de maneira responsável. 5- O dever jurídico de exercer a parentalidade de modo responsável compreende a obrigação de conferir ao filho uma firme referência parental, de modo a propiciar o seu adequado desenvolvimento mental, psíquico e de personalidade, sempre com vistas a não apenas observar, mas efetivamente concretizar os princípios do melhor interesse da criança e do adolescente e da dignidade da pessoa humana, de modo que, se de sua inobservância, resultarem traumas, lesões ou prejuízos perceptíveis na criança ou adolescente, não haverá óbice para que os pais sejam condenados a reparar os danos experimentados pelo filho. 6- Para que seja admissível a condenação a reparar danos em virtude do abandono afetivo, é imprescindível a adequada demonstração dos pressupostos da responsabilização civil, a saber, a conduta dos pais (ações ou omissões relevantes e que representem violação ao dever de cuidado), a existência do dano (demonstrada por elementos de prova que bem demonstrem a presença de prejuízo material ou moral) e o nexo de causalidade (que das ações ou omissões decorra diretamente a existência do fato danoso). 7- Na hipótese, o genitor, logo após a dissolução da união estável mantida com a mãe, promoveu uma abrupta ruptura da relação que mantinha com a filha, ainda em tenra idade, quando todos vínculos afetivos se encontravam estabelecidos, ignorando máxima de que existem as figuras do ex-marido e do ex-convivente, mas não existem as figuras do ex-pai e do ex-filho, mantendo, a partir de então, apenas relações protocolares com a criança, insuficientes para caracterizar o indispensável dever de cuidar. 8- Fato danoso e nexo de causalidade que ficaram amplamente comprovados pela prova produzida pela filha, corroborada pelo laudo pericial, que atestaram que as ações e omissões do pai acarretaram quadro de ansiedade, traumas psíquicos e sequelas físicas eventuais à criança, que desde os 11 anos de idade e por longo período, teve de se submeter às sessões de psicoterapia, gerando dano psicológico concreto apto a modificar a sua personalidade e, por consequência, a sua própria história de vida. 9- Sentença restabelecida quanto ao dever de indenizar, mas com majoração do valor da condenação fixado inicialmente com extrema modicidade (R$ 3.000,00), de modo que, em respeito à capacidade econômica do ofensor, à gravidade dos danos e à natureza pedagógica da reparação, arbitra-se a reparação em R$ 30.000,00. 10- É incabível condenar o réu ao pagamento do custeio do tratamento psicológico da autora na hipótese, tendo em vista que a sentença homologatória de acordo firmado entre as partes no bojo de ação de alimentos contemplava o valor da mensalidade da psicoterapia da autora, devendo eventual inadimplemento ser objeto de discussão naquela seara. 11- Recurso especial conhecido e parcialmente provido, a fim de julgar procedente o pedido de reparação de danos morais, que arbitro em R$ 30.000,00), com juros contados desde a citação e correção monetária desde a publicação deste acórdão, carreando ao recorrido o pagamento das despesas, custas e honorários advocatícios em razão do decaimento de parcela mínima do pedido, mantido o percentual de 10% sobre o valor da condenação fixado na sentença.(STJ - REsp: 1887697 RJ 2019/0290679-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 21/09/2021, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/09/2021) (destaquei).
Por outro lado, quem defende a impertinência da reparação apresenta a justificativa de que o ato ilícito, previsto no art. 186 do Código Civil, instituto que autoriza a indenização, deve ser devidamente comprovado, e que ainda, ninguém pode ser obrigado a amar, não podendo o Poder Judiciário impor tal encargo.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer do artigo foi tratada sobre a importância do papel da família no desenvolvimento do ser humano. Demonstrou-se que a Constituição Federal cuida de forma especial das relações familiares, uma vez que estas são instrumentos fundamentais para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.
Tomando por bases deveres relacionados à família, começaram a surgir debates sobre a existência de um dever legal de promoção de afeto e se a sua ausência seria capaz de provocar dano moral. O tema vem ganhando importantes discussões, encontrando defensores de ambos os lados. No entanto, não há, até o presente momento, jurisprudência pacificada dos Tribunais Superiores sobre a matéria.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Eduardo. MADALENO. Rolf. Responsabilidade Civil no Direito de Família. 1ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 27 de outubro de 2023.
______. Superior Tribunal de Justiça. REsp: 1887697 RJ 2019/0290679-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 21/09/2021, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/09/2021. Disponível em: < https://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/STJ/attachments/STJ_RESP_1887697_7365c.pdf?AWSAccessKeyId=AKIARMMD5JEAO67SMCVA&Expires=1698701056&Signature=RU8hylwK1Ch1%2FQ7bDb%2BRsFrtRq4%3D>. Acesso em: 28 out. 2023.
LÔBO. Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Famílias. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
Bacharela em Direito. Assessora de Magistrado do Tribunal de Justiça de Pernambuco .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTANA, KAROLYNE COLINO. Abandono afetivo e a responsabilidade civil extrapatrimonial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 nov 2023, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /63792/abandono-afetivo-e-a-responsabilidade-civil-extrapatrimonial. Acesso em: 28 dez 2024.
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